Os Deuses de Uhr-Gholl
- Leo Ridire
- 14 de jan. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 13 de abr.
![]() | Em um planeta vermelho perdido no mar de estrelas que conhecemos como Via-Láctea, duas espécies floresceram em uma evolução sincrética. A primeira raça, chamada de Rathi era gigantesca, de descendência reptiliana, tendo muitos indivíduos que superavam os quinze metros de altura e, por sua estatura e força, não demoraram a ser reconhecidos como deuses. Os Rathi eram longevos, podendo sobreviver por muitas gerações de seus adoradores, o que só serviu para reforçar a imagem de divindade que eles mantinham. A segunda raça, os Quan, eram menores, possuindo cerca de dois metros e meio. Eles descendiam de uma espécie incomum de macacos que desenvolveu consciência logo depois que os Rathi entraram na idade do bronze. |
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O planeta vermelho não demorou para ser banhado com o sangue de guerras, afinal, nem todos os deuses se aturavam. Rathis, por seu tamanho, necessitavam de grandes quantidades de comida todos os dias e, para se ter alimentos, era necessário ter território. Logo, não demorou a “descoberta” que um punhado de terra valia muito mais do que diversas vidas Quan.
Talvez por destino, ou pura obra do acaso, uma poderosa civilização floresceu deste caos. O Império de Rysiax se estendeu por um grande território, tendo os deuses Rathi como seus líderes e, nas épocas das guerras mais sangrentas, milhares de soldados Quan marcharam contra membros de sua própria raça ao bel prazer de seus deuses.
Tal época ficou conhecida como “A Idade dos Massacres” e a violência era tão instituída no dia a dia que alguns especialistas afirmam que a expectativa de vida de um Quan era menor do que a de alguns animais exóticos de estimação que os Rathis mantinham em seus imensos palácios opulentos.
Foi na “Idade dos Massacres” que outra herança maldita foi instituída. Muitas nações daquele tempo eram mais do que rivais, eram inimigas de morte. Por isso, Rathis não tinham a mesma liberdade de procriar que os Quans possuíam. Os deuses poderiam gerar descendentes apenas com parceiros de linhagens selecionadas e, gerações dessa prática, trouxa apenas uma coisa: doença.
A “Grande Mácula”, como ficou conhecida durante a época da expansão dos motores à vapor, estava disseminada entre todos os deuses e parecia piorar a cada geração. Afinal, a única maneira digna de manter a linhagem divina imaculada pelos impuros deuses estrangeiros era o casamento entre primos ou até mesmo entre irmãos.
Revoltas eclodiram em diversos países quando os Quan começaram a ver seus deuses, outrora gigantescos e imponentes, agora doentes e fracos. Novas nações surgiram com macacos sem pelos no comando e, é claro, nenhum Rathi ousou tolerar isso. Para cada nova república Quan erguida ao custo de muito sangue, uma nova guerra santa era conclamada pelo deus Rathi mais próximo.
As coisas não melhoraram muito com a chegada da era da tecnologia moderna. Agora tínhamos deuses fracos, doentes e alguns até mesmo loucos, com um arsenal nuclear em suas mãos. Foi assim que o pequeno planeta vermelho de Uhr-Gholl viu seus últimos dias.
Quando a “Última Guerra de Uhr-Gholl” começou, os primeiros a cair foram os países fracos que eram comandados exclusivamente por Quans infiéis ou aqueles cuja linhagem de Rathis já estava tão deteriorada e decrépita que não tinha mais forças para reagir. Todos desapareceram em brilhantes cogumelos nucleares em poucos meses.
A guerra agiu como uma seleção natural e, em um ano de conflito, só os mais fortes existiam, porém, não havia qualquer recanto no planeta que não medisse menos de quatro mil grays de radiação. A cozinha de alguém era tão contaminada quanto o interior do reator nuclear de um submarino. Bom, se ainda existissem mares em Uhr-Gholl, ainda teríamos submarinos, mas o calor extenuante das guerras nucleares os evaporou.
Suponho que, a esta altura, você já deva estar se perguntando quem lhe escreve. Bom, me chamo Bek-mihr Oyaelaellaru Ruru-Rax’Lenehr, o último Imperador de Rysiax e, por mais que me doa dizer isso, o último dos Rathi vivos. Todos os demais membros da minha espécie morram pela guerra, pela radiação ou por doenças correlatas a nossa condição genética incurável. Minha consorte faleceu de câncer não há muito tempo e não deixou descendentes, já eu, nasci estéril por força da minha “Grande Mácula”.
Gostaria de dizer que minha raça deixa a existência com a minha morte iminente e que os Quan herdarão o belo planeta de Uhr-Gholl, mas isso não será verdade. Eles estão tão condenados quanto nós neste mundo decadente. Alguns dos mais renomados cientistas dizem que em cerca de dez rotações solares nosso planeta vai perder a habilidade de reter atmosfera e todos que estiverem vivos vão simplesmente sufocar até a morte.
Talvez por obra do todo-poderoso acaso, quando minha consorte faleceu dei ordens aos Quan mais próximos de mim para iniciar um projeto. A construção de uma nave para levar alguns deles até o planeta mais próximo no nosso sistema solar, o terceiro em órbita da estrela para ser mais preciso. É um lugar habitável, com ar puro, animais, grandes continentes, muito verde e enormes oceanos. Por ser um corpo celeste maior, possui o dobro da gravidade de Uhr-Gholl e isso há de ser um inconveniente para a primeira geração de Quons que residir lá, mas tenho fé de que eles se adaptarão nas gerações seguintes. Só receio que lá eles não serão tão altos quanto são aqui.
Deixo essa nota para posteridade para ser lida pela primeira vez quando chegar a minha hora de me juntar às estrelas, quando for velado pelos meus seis Chanceleres Imperiais. Se este é o caso, rogo aos verdadeiros Deuses, aqueles imateriais que deram vida aos Rathi e aos Quon, para que o projeto da nave tenha sido concluído e ela possa levar pelo menos alguns deles ao terceiro planeta.
Sendo assim, deixo esta existência com um arrependimento: o projeto da minha vida, a nave que salvará a raça dos Quon, não é capaz de levar todos eles, o que exigiu grandes quantidades de sigilo, afinal, todos aqueles que permanecerem em Uhr-Gholl vão sufocar até a morte quando nosso planeta perder a atmosfera em alguns poucos anos. Se algo bom vai sair disso, é que, aqueles que puderem seguir até o terceiro planeta, não precisarão recomeçar sua civilização quase que da idade da pedra, sem acesso as nossas tecnologias avançadas e, com alguma sorte, não repetirão os erros dos deuses de Uhr-Gholl...
Bek-mihr Oyaelaellaru Ruru-Rax’Lenehr,
Quadringentésimo vigésimo oitavo Imperador de Rysiax,
último dos Rathis a viver em Uhr-Gholl
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